Não é fácil lá chegar. Não há hotéis de luxo à sua espera (embora isso dependa daquilo que considera luxo). Mas a recompensa? Desaparecer em quatro pequenas fatias de um paraíso helénico perdido, as Pequenas Cíclades do Egeu. (Talvez Ulisses estivesse apenas a fingir que queria voltar para casa…)
Com o vento norte, denominado meltemi, banhando-nos com o seu ar frio, o Express Skopelitis (que nada tem de expresso) manobra em redor de Keros, uma ilha desabitada que, em tempos, se pensa ter acolhido um portão para o Hades, e passando por Kato ou Koufonisi (Inferior), lar de ovelhas e de um ou dois pastores, uma igreja ortodoxa e algumas das mais isoladas praias gregas. Estas e outras ilhotas das Pequenas Cíclades, o nome dado a este arquipélago, foram reduto de piratas durante os séculos de domínio turco e sempre estiveram fora dos roteiros. A escassez de recursos conspirou para abrandar o desenvolvimento e manter um número modesto de visitantes, embora o contingente de gregos conhecedores que aparecem todos os anos seja cada vez maior.
Igreja de São Jorge, na vila de Khora, Koufonisi, |
Cerca de quinze proprietários em busca de inquilinos correm para receber o nosso barco. Empunham fotografias plastificadas dos hotéis e quartos privados que arrendam. Regateio com Stamatis, o dono do Hotel Aeolos. Chegamos a acordo num preço e salto para a sua minivan, na qual faço a viagem de cinco minutos morro acima. Pano Koufonisi é montanhoso e as suas poucas estradas asfaltadas, acidentadas e curvilíneas e cheias de subidas e descidas, são perfeitas para caminhantes enérgicos, mas tudo menos ideais para ciclistas. (Apesar disso, um café nos arredores da vila faz negócio com o aluguer de bicicletas de montanha.)
Ansioso por andar e pôr o pé na areia (a ilha tem oito praias), parto do Aeolos na manhã seguinte e inicio uma caminhada de vinte minutos por uma estrada de macadame estreita, que, supostamente, me conduzirá à praia de Finikas – segundo o meu guia de bolso, o santuário mais próximo para os adoradores do sol. Não sei como, consigo perder o meu destino (longe da vila não existem sinais, nem pessoas a quem pedir indicações), e acabo por subir colinas ventosas e banhadas pelo Sol. A rocha bege manchada apresenta-se coberta por arbustos espinhosos e erva seca e a minha única companhia são cabras e ratos velozes, lagartos escaladores e alvéolas esvoaçantes. Após a recente vaga de calor, as temperaturas clementes que se instalaram no dia anterior reanimaram a paisagem e impregnaram-na de vida. Não foi por acaso de que os gregos antigos povoaram o seu mundo com os deuses caprichosos da physis: Éolo, deus dos ventos; Poseidon, do mar; e Deméter, das colheitas. Caminhando em Pano Koufonisi, sinto-me como um convidado privilegiado no seu domínio.
Os moinhos são uma presença constante na paisagem rural da Grécia. Muitos estão já transformados em restaurantes e bares |
Nessa noite, de volta a Khora, desço aquilo que parece ser a rua principal: uma rua pedonal que serpenteia entre casas caiadas de branco, cobertas de pétalas violeta caindo dos ramos pendurados das olaias. Um cantiga onírica de sonoridade latina com as palavras “Ay Ay Ay! Puerto Rico!” atrai-me para o Astrolouloudo (“Flor das Estrelas”), um café que se assemelha a uma gruta iluminada, com almofadas cor-de-laranja dispostas sobre sofás em madeira, prateleiras decoradas com cópias de antigas estatuetas gregas e egípcias, conchas e fotografias em tons sépia de gente da ilha, sem dúvida já falecida. Há reproduções de quadros do Renascimento penduradas entre pedaços de madeira flutuante e uma ânfora com um metro de altura coberta com um tampo em pedra serve de mesa junto ao bar. O espaço parece quase demasiado bem concebido para se enquadrar aqui – pelo menos quando comparado com os tradicionais cafés e ouzerias da ilha, poisos com mobílias espartanas poeirentas e menus simples (ouzo, Metaxa, polvo e frappedakia, ou café gelado açucarado) que servem sobretudo homens mais velhos. Não demoro a encetar uma conversa com o dono, decorador e empregado de bar do café: um homem de cabelo entrançado chamado Manolis Tsavaris. A sprezzatura do seu visual e do interior do Astrolouloudo leva-me a perguntar se já viveu em Atenas ou no estrangeiro, mas ele diz-me que nunca saiu de Koufonisi, excepto em férias. “Criei o ambiente com aquilo que havia em meu redor”, explica. “Aquela ânfora, por exemplo, veio de Keros.”
Embora a pesca continue a ser a principal fonte de rendimentos, a prosperidade trazida a Pano Koufonisi pelo turismo contribuiu para evitar que os insulares emigrassem para Atenas, abrandando uma tendência de décadas, comum noutras zonas rurais da Grécia. À nossa volta, anciães misturam-se com turistas, gregos e estrangeiros. Até velhos lobos-marinhos, que poderiam manter-se isolados, se avistam entre os clientes de Manolis. Além disso, o Astrolouloudo já tem concorrência num café situado mais acima, na mesma rua: um bar encantador construído numa antiga escola em pedra recuperada e adequadamente chamado Scholio.
Volto a descer a rua principal, que, apesar da hora tardia, está cheia de crianças a brincar à apanhada e adultos a conversar, aproveitando a brisa nocturna. A estrada que liga a zona antiga de Khora à nova – onde fica o meu hotel – atravessa um campo escuro. Ondas movidas pelo meltemi rebentam contra a costa e o vento sopra, choroso, por entre os pinheiros, como um canto fúnebre de eras passadas. Olho para cima. O céu é uma cortina azul cobalto polvilhada pela poeira estelar da Via Láctea.
Depois de falar com Stefanos Kovaios, um velhote barbudo que me recebe junto ao barco com outros proprietários, arrendo um quarto na Pension Galini, em Khora (um nome comum entre as aldeias principais das ilhas do Egeu), acima do porto de Mersini. O meu quarto fica no segundo andar e revela-se básico mas agradável: branco imaculado, com uma enorme janela que se abre para um jardim repleto de flores e, mais adiante, cabras pastando nos campos circundados por rochas com oliveiras reluzentes e roseiras bravas. Dizer que o meu quarto apanha a brisa seria um eufemismo: por vezes os ventos são tão fortes que as portas abertas da pensione se encontram fixadas às paredes. Deixar uma porta bater, não tardo a descobrir, é capaz de acordar as harpias no Hades.
Khora tem basicamente uma rua principal asfaltada e algumas transversais. Em frente à mistura desordenada de casas caiadas e lojas de pais-e-mães, aldeães envelhecidos pelo sol sentam-se em bancos, contando boatos, suspirando e mexendo nos seus cordões de contas de vidro, os komboloyi. Muitos jovens partiram em busca de trabalho no continente.
Paro no Vegera, um restaurante de aspecto caseiro por detrás de uma treliça coberta por trepadeiras que esconde uma varanda com mesas e vasos de flores. Tenho ansiado por um prato em particular: costeletas de borrego grelhadas em carvão.
“Tem paidakia?”, pergunto à proprietária, uma mulher robusta que está sentada cá fora.
“Pois claro que sim. Só que agora não.”, responde-me com naturalidade.
“Porquê?”, volto a indagar sem entender.
“O cozinheiro é o meu marido e ele ainda não voltou dos campos. Mas volte às sete horas. Vai sentir o cheiro das costeletas a grelhar!” Faço o que me mandam, mas não cheiro nada. “Ainda não há costeletas?”
“Claro que não. É a época de os animais nascerem e o meu marido deve estar a ajudar uma cabra a parir. Mas ele não deve demorar. Sente-se.”
A relaxar num café junto à praia de Pori, em Koufonisi. A simplicidade alia-se ao silêncio e à beleza nestas quatro pequenas ilhas |
Ele começa a mexer num grelhador na rua, ao lado de vários automóveis estacionados. De mangas arregaçadas e olhos vivos, ele grita com os condutores para tirarem dali os veículos ou arriscarem-se a que eles peguem fogo: “Estou a cozinhar. Não posso correr o risco de uma fagulha saltar e provocar um incêndio!” Trinta minutos depois, Antonis despeja meia dúzia de costeletas chamuscadas no meu prato. Ele estala os dedos e a sua filha adolescente traz-me um copo de vinho tinto da casa fresco e um pires com uma fatia de ksinomizothra (um queijo de cabra amanteigado, de sabor mais pungente do que o feta, e uma especialidade de Schinousa). Começo a comer ao som de uma gravação de bouzoukis que dedilham uma canção sobre amores não correspondidos. Foi o próprio Antonis quem criou os borregos, em pastos nos arredores da aldeia, e o queijo é feito com o leite das suas cabras. Quando termino, ele oferece-me outra especialidade local: uma dose do suave e adocicado rakomeli, de sabor a mel, por si destilado. Este tipo de hospitalidade está a desaparecer de muitos sítios da Grécia, mas não daqui.
Na noite seguinte vou até ao Deli Sweet Bar, um bar à beira do penhasco com amontoados de flores roxas animando um interior totalmente branco, quase escandinavo, único em Schinousa. Em frente a um enorme televisor de plasma, um pequeno grupo de turistas australianos discute o itinerário do dia seguinte. O empregado de bar, maître d’ e co-proprietário Dimitris Pepodekis parece vestido para andar de iate, com o colarinho do seu Izod branco revirado e o cabelo iluminado por madeixas louras. Ele oferece-me um copo frio de Mihalaki, um suave tinto de Creta, e pára para conversar um pouco. A sua mulher é de Schinousa, mas ele é originário de Creta. Inspirado pelo desejo de criar algo contemporâneo, mas grego, ele e os seus sócios impregnaram o Deli com uma sofisticação fashion. A empregada de mesa não tarda a trazer-me um prato com tomatinhos minúsculos, pão escuro, fatias de pepino e feta. Sento-me na varanda, com vista sobre os moinhos e as ilhas dourada pelo sol poente.
Agios Georgios é um minúsculo lugar com casas caiadas de branco e debruadas a azul, o único povoado à beira-mar de Iraklia – o maior das Pequenas Cíclades, em termos de território, embora conte apenas com 115 residentes, e o meu próximo ponto de paragem. Atracamos no porto – um molhe, na verdade – a meia dúzia de metros da praia de areia da vila, cuja zona superior se encontra à sombra de uma falange de pinheiros balouçantes. Dominada pelas encostas do monte Papas, com 426 metros de altitude, Iraklia é a ilha mais cénica do arquipélago, com caminhos pedonais permitindo longas caminhadas, frequentemente por escarpas solitárias sobre o mar, grutas revestidas por estalagmites, um par de moinhos históricos e umas quantas igrejas oitocentistas por explorar.
Devido ao seu número reduzido de habitantes, Ikralia é a mais perfeita das Pequenas Cíclades para caminhantes que apreciam o isolamento. Subo por um caminho do lado ocidental das encostas, muito acima do mar, e dirijo-me à Gruta de São João. A gruta é uma desilusão. Os pastores arruinaram o sítio com os seus rebanhos. Mas a caminhada oferece vistas gloriosas do mar Egeu e das ilhas em redor “banhadas em luz, um véu diáfano de neblina fina cobrindo a nudez eterna da Grécia”, tal como Kazantzakis escreveu.
Prossigo pelo caminho, passando por entre figueiras-da-Índia e arbustos de tomilho, até chegar a Panagia, uma aldeia a cerca de 1,5 quilómetros para leste, aninhada entre campos de cultivo em socalcos e muros de pedra. As cabras que ali pastam berram, alarmadas, quando me aproximo. No café, os velhotes estão sentados em cadeiras de madeira que chiam enquanto mulheres vestidas de preto acenam com as mãos, bebericam frappedakia, e contam as notícias do dia, dizendo “Po po po!” (uma exclamação intraduzível de ligeira consternação), enquanto tomam conta de crianças pequenas. Continuo em busca da praia perfeita das Cíclades. Venho a encontrá- -la em Livadi, do outro lado da colina de Agios Georgios. Emerjo, escorrendo água, do mar frio e sou acariciado por uma brisa quente. Percebo então que estou sozinho numa extensão de quase um quilómetro de areia fina como pó, mesmo por baixo de uma fortaleza helénica em ruínas e de um campo de cardos. Talvez, diz-me o mapa, os baluartes se ergam sobre um templo a Zeus e um santuário a Tique (Acaso, uma das Moiras da mitologia grega), mas ninguém tem a certeza. Existe qualquer coisa icónica, quase onírica, na cena: uma praia grega banhada pelo Sol, um templo na encosta, emblemático de uma civilização passada, mas servindo agora como flauta dos ventos ascendentes, um ninho improvisado para as alvéolas.
Donousa, cuja população mal atinge os 110 habitantes, é a mais distante das ilhas e a minha última paragem nas Pequenas Cíclades. Segundo o mito, foi aqui que Dionísio escondeu Ariadne, depois de ela ter sido abandonada em Naxos pelo seu amante Teseu, o matador do Minotauro. Os gregos associam pouco mais à ilha montanhosa, embora ela esteja a desenvolver um certo cachet devido ao ambiente boémio de Kedros e outras praias que permitem acampar e nadar de forma naturista.
Gala, em Pano Koufonisi. É uma das muitas praias desertas das Pequenas Cíclades, ao contrário do que acontece nas ilhas gregas mais conhecidas |
Pouco depois, o santuário rochoso de Donousa ergue-se sobre as ondas e a vila portuária de Stavros, minúscula até pelos padrões das Pequenas Cíclades, torna-se visível. Descemos do barco entre uma multidão de pessoas que nos viram atravessar as ondas. Uma jovem loura chamada Kaliopi, cuja t-shirt branca justa exibe as palavras “I’m Young and Free”, diz-me que tivemos muita sorte em ter chegado a terra. Ela oferece-me um quarto nos arrabaldes da vila e eu aceito. Por idílica que a minha estadia nas ilhas tenha sido, começo a sentir a falta de alguma vegetação – folhas sem espinhos, árvores sem agulhas, erva que não pique. Em busca do verde, alugo um táxi – talvez o único da ilha – para empreender a tortuosa viagem de oito quilómetros até à aldeia de Mersini. Ali, um caminho íngreme e mal asfaltado leva-me à principal atracção não marítima de Donousa: uma nascente que irrompe da encosta rochosa do Monte Vardhia, por baixo de um plátano gigantesco.
O meltemi agita as folhas. Sento-me sob a árvore, no banco construído no muro de pedra que circunda o pátio de mosaicos. Sinto-me rejuvenescido, em paz, com os sentidos embalados pelo vento, o ar fresco, o aroma das flores silvestres e a água borbulhante. Uma senhora de idade, com um lenço na cabeça e coxeando apoiada numa bengala, emerge de entre os caniçais com uma saca de ervas acabadas de colher. Trocamos cumprimentos – eu animado, ela reticente. Ela passa por mim, lançando-me um olhar cauteloso, e desaparece pouco depois.
Viro os olhos para o mar lá em baixo, cujo azul-turquesa é interrompido pela espuma das ondas. Rendi-me aos encantos retemperadores das ilhas. Tal como Kazantzakis disse, “a felicidade é uma coisa simples e genuína: um copo de vinho, uma castanha, uma braseira humilde e o barulho do mar.” Acordo todos os dias sem desejar mais do que inspirar o ar salgado do mar e sentir o Sol no rosto. É isto mesmo: a total tranquilidade que eu procurava. Fecho os olhos e deixo a minha respiração abrandar. Para mim, o tempo parou.
QUATRO ILHAS GREGAS NO MEIO DO AZUL
A maioria dos proprietários de hotéis e enoikiazomena dhomatia (quartos para arrendar) recebem os barcos à chegada e mostram fotografias dos seus alojamentos ou esperam junto aos monovolumes com anúncios reveladores. Na época alta, contudo, convém reservar os quartos com antecedência.
Compre ou leve consigo pastilhas antimosquito e o respectivo aparelho de ligar à tomada, bem como um livro com frases traduzidas para grego. A familiaridade com o alfabeto grego ajuda a ler os sinais, que mesmo nos hotéis podem apresentar-se escritos em grego. Cada ilha tem um ou dois telefones públicos. Se não estiverem avariados, funcionam com cartões pré-pagos (tilekartes). A rede móvel é muito irregular. Parte do encanto das ilhas é a quase ausência de automóveis, carrinhas e autocarros. Planeie as caminhadas para o princípio ou para o fim do dia e mantenha-se nos trilhos – fora deles, abundam espinhos e pedras de arestas afiadas. Minor Cyclades oferece um mapa inigualável com os trilhos e as melhores vistas (Skai Map No. 312 em terrainmaps.gr). As várias estradas serpenteantes não apresentadas nos mapas podem confundir os turistas, já que era essa a sua intenção original: foram concebidas para enganar piratas invasores.
Umas palavras sobre etiqueta: o nudismo é proibido nas praias das vilas, mas tolerado em praias mais isoladas. Nas vilas, até o uso de calções e camisolas de alças pode suscitar olhares de censura. Enquanto estrangeiro, espera-se que cumprimente as pessoas primeiro: yia sas! é a saudação mais simples.
Os tempos em que o peixe e o marisco eram baratos fazem parte do passado. O peixe mais caro é o barbounia (salmonete), entre €45 e €60 o quilo. O mais barato é o kolios (carapau), a €15 o quilo. Se pedir um copo de ouzo (bebida com sabor a anis que fica com aspecto leitoso quando se lhe adiciona água) ou rakomelo (bebida alcoólica servida quente, com mel e especiarias) num bar, os mezedhes (entradas) de lula e polvo que o acompanham costumam ser grátis. Cabra, borrego e vitela (criados localmente) também se destacam nos menus.
O código telefónico da Grécia é 30.
Os preços mencionados referem-se à época alta de 2011.
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