sexta-feira, 5 de agosto de 2011

O Senhor do Atlas

 

A cordilheira do Alto Atlas marroquino é uma longa muralha com 700 quilómetros de extensão, que constitui uma fronteira entre Marrocos atlântico e sub-tropical, e Marrocos continental e desértico.
Os seus cumes mais altos ultrapassam ou aproximam-se dos 4.000 metros, como são exemplo o Jbel Toubkal no Alto Atlas Ocidental, com 4.167 metros, o Jbel M’Goun no Alto Atlas Central, com 4.068 metros ou o Jbel Ayachi no Alto Atlas Oriental, com 3.757 metros de altitude.
O Alto Atlas é um mundo de montanhas, rios, lagos, planaltos, vales férteis e gargantas escarpadas, habitado por tribos berberes desde tempos milenares, que conservam a sua identidade pela distância e isolamento.
Para além de fronteira geográfica, o Alto Atlas sempre foi uma fronteira política, que separou as regiões sedentárias governadas pelo poder central, o blad al-makhzen (ou país da lei), das regiões nómadas auto-governadas pelas tribos, o blad as-siba (ou país dissidente).
Foi a última região de Marrocos a ser dominada durante a conquista Islâmica e a última a ser pacificada pelo colonialismo francês.
Esta é a história de um homem chamado Thami El Glaoui, qadi ou chefe da tribo Glaoua, conhecido como o Senhor do Atlas, e do seu papel ao lado das forças coloniais francesas durante a ocupação e pacificação do Sul de Marrocos.
A Kasbah de Telouet, “ninho de águia”do Glaoui
Vários autores defendem que os Glaoua terão a sua origem na região sub-sahariana, tendo-se estabelecido no Alto Atlas, na zona a Sul da Cidade de Marraquexe, após expulsarem as tribos locais, nomeadamente os Ait Telouet.
O seu poder inicia-se no século XVIII quando se assumem como “porteiros” do Atlas, controlando a sua travessia pelas caravanas vindas do Sul e taxando os seus produtos, primeiro na estrada do Tiz’n’Test, entre Marraquexe e Taroudant, posteriormente na estrada do Tiz’n’Tichka, entre Marraquexe e Ouarzazat.  O Tiz’n’Tichka era de longe a rota mais proveitosa, já que constituía a passagem das caravanas oriundas da região do Tafilalt, ponto de chegada a Marrocos das especiarias, ouro e marfim.
É assim que, em meados do século XIX estabelecem um souk e um caravanserai em Telouet, no Tiz’n’Tichka, onde, para além de procederem à cobrança de taxas às caravanas, exploram minas de sal e manganésio existentes no local. “Havia de tudo em Telouet, tâmaras, azeite, henna, café, produtos de beleza, mel, cereais.”
O seu reconhecimento oficial enquanto tribo dominante do Sul marroquino remonta ao ano de 1893, quando o Sultão Mulay Hassan fica retido por uma tempestade de neve nas montanhas do Alto Atlas e é salvo pelos Glaoua. Mulay Hassan designa El Madani El Glaoui como Califa dos Glaoua e seu representante em todas as regiões do Sul, conferindo-lhe o título de grão-vizir (primeiro ministro) e oferece-lhe simbolicamente um canhão alemão Krupp, hoje ainda em exposição na Kasbah de Taourirt em Ouarzazat. Ao seu irmão Thami, de 28 anos, concede o título de Pachá de Marraquexe.
O canhão dos Glaoua passa a ser o símbolo da sua superioridade guerreira. A tribo Glaoua, feudal e bélica por natureza, passa a dispor da artilharia para conquistar mais terras aos seus vizinhos.
A Kasbah de Taourirt em Ouarzazat . Do lado esquerdo, no canto do edifício, é visível o canhão Krupp oferecido por Moulay Hassan aos Glaoua
Este reconhecimento permite aos Glaoua não só controlarem oficialmente o comércio das caravanas e das tribos do Sul, como também a sua comercialização no grande souk de Marraquexe. Impõe-lhes também a responsabilidade de representarem o makhzen na região e o papel de exercerem a sua autoridade.
No ano de 1900 El Madani comanda uma operação militar para conquistar o Todra e o Tafilalt, mas é derrotado pela confederação das tribos Ait Atta.
Em 1912 é estabelecido o protectorado da França em Marrocos e os franceses tiram partido da hegemonia dos Glaoua no Sul do país.
Com a morte de El Madani sucede-lhe como qadi o seu irmão Haj Thami El Mezouari El Glaoui, que ficou conhecido como o Senhor do Atlas. O Glaoui, que tinha perdido o título de Pachá de Marraquexe nos anos que antecederam a instauração do Protectorado, é reconduzido no cargo pelas autoridades coloniais, tornando-se o representante da ocupação francesa no Sul até à independência de Marrocos em 1956.
Haj Thami El Glaoui
Aos olhos do Marechal Lyautey, Governador do Protectorado, o Glaoui será o pacificador do Sul.
A partir da Kasbah de Telouet organiza as suas acções militares contra as tribos rebeldes. Em 1912 faz uma nova tentativa falhada de derrotar os Ait Atta no Todra.
Nesta altura a estratégia militar da França para o Sul de Marrocos era a de utilizar os nativos para combater os rebeldes, organizando um exército de Harkas ou Goums, nome dado aos soldados marroquinos comandados por oficiais franceses.
De facto os franceses cedo percebem que não será com as suas tropas, nem mesmo com a temível Legião Estrangeira, que conseguirão dominar esta região, tão geograficamente isolada, topograficamente irregular e humanamente indomesticável.
Aldeia no Vale de Ourika
Várias bases e estruturas de ocupação são então criadas, sob a forma de Kasbahs e Ksars, em Ouarzazat, Skoura, Lgumt, Ait Seddrate, Tinghir e no vale do Draa. No território de cada tribo derrotada os Glaoua constroem uma Kasbah que alberga uma administração hierarquizada. Por esse motivo muitas das Kasbahs da região são conhecidas pelo nome de “Kasbah do Glaoui”.
Para as controlar são substituídos os imgharen, ou chefes tribais, e nomeados notáveis Glaouis ou homens da sua confiança escolhidos no seio das tribos locais, com a missão de gerir essas zonas e estabelecer a ligação entre a população local e o makhzen, neste caso a administração colonial.
Por sua vez os qaids (alcaides) Glaouis eram controlados pelo “oficial dos assuntos indígenas”, nomeado pelo ministério francês da guerra, que controlava toda a vida politica, social, económica e judicial da circunscrição de que estava encarregue.
Esta política permite obter melhores resultados sem percas de vidas francesas.

A Kasbah de Amerdihil em Skoura
Estas Kasbahs e Ksars são construções de terra crua, taipa ou adobe, muitas vezes em “taipa militar”, que integra no material a cal como forma de o tornar mais resistente. São estruturas fortificadas, construídas em altura, com poucas aberturas para o exterior, não só por questões térmicas, como também defensivas.
Constituem uma importação da arquitectura tradicional Yemenita, já que a região dos vales do Draa e do Dadés foram ocupadas no século XI por tribos Árabes Maaqil originárias do Yemen, após submeterem os berberes e os arabizarem.
A diferença tipológica entre a Kasbah e o Ksar é que a primeira é uma cidadela fortificada, portanto um conjunto de habitações agregadas, enquanto o segundo é um castelo, um edifício que constitui uma unidade construtiva.
Destes termos derivam as designações portuguesas Alcáçova e Alcácer.
A Kasbah de Ait Benhaddou, classificada pela UNESCO como Património Mundial
Mas a situação não é pacífica e a França colonial não consegue impor o seu poder através dos Glaoua. Se é verdade que nas áreas urbanas os qaids governam, como em Ouarzazat e Tinghir, nas regiões circundantes as tribos não se submetem, caso dos Ait Atta, Ait Seghruchen, Ait Mrghad, Ait Hadiddu e Ait Ysha.
Os Ait Atta, que são na verdade uma confederação de tribos, criada durante a ocupação da região pelos Maaqil do Yemen, assumem-se como a verdadeira resistência á política de pacificação. Sediados na zona do Todra inviabilizam a ocupação de todo o Sueste de Marrocos, nomeadamente do Tafilalt.
Em 1920 os franceses ordenam ao Glaoui que organize um ataque em força com tropas Harka. É enviado um exército de 8.000 homens e 6 peças de artilharia de montanha, que apesar de submeter os Ait Dadés, é derrotado pelos Ait Atta.
Após 4 anos de guerra os franceses percebem que os Harka não conseguirão pacificar a zona, instalando então em Ouarzazat um centro de operações com tropas mistas, com dependências em Telouet, Kalaat M’Gouna, Boumalne, Imiter, Agdz e Taliwine.
A partir desta altura a França irá utilizar a sua superioridade em armamento para iniciar uma guerra sem tréguas contra a resistência.
Kasbah em Kalaat M’Gouna
A intervenção directa do exército francês é decisiva. No início dos anos 30 o Tafilalt é ocupado pelas forças coloniais. A estratégia é cercar os Ait Atta e inviabilizar que recebam apoios de outras tribos.
Derrotados no Todra em 1931 os Ait Atta refugiam-se no Jbel Saghro, no Anti-Atlas, e capitulam em 1933 após a batalha de Bou Gaffer.
Bou Gaffer é um símbolo da resistência marroquina à ocupação estrangeira. O exército francês conta com 50.000 homens entre tropas regulares do Exército de Africa, Harkas e a
Legião Estrangeira, 40 aviões e artilharia. Do outro lado estão 1.000 Ait Atta, entre homens, mulheres e crianças. Os franceses precisam de 42 dias para os derrotarem.
A violência do ataque francês é visível nos rochedos de granito fragmentados pelos bombardeamentos de artilharia e da aviação. O terreno ainda hoje está repleto de obuses por deflagrar, que constituem uma ameaça permanente para a população local.
Bou Gaffer é também um símbolo da coragem da mulher amazigh. “De todas as guerras conhecidas, a mulher nunca tinha tido um papel tão proeminente e admirável como na batalha de Bou Gaffer. Ela assegura a retaguarda, prepara os víveres e as munições, procura água nas nascentes descobertas, apoia e mantém viva a chama de combater e resistir, admoesta os hesitantes, encoraja com “yuyus” estridentes que os ecos das montanhas amplificam…”
Kasbah de Ait Benhaddou
Apesar do cargo de Pachá de Marraquexe, o Glaoui vive a maior parte do tempo no seu ninho de águia de Telouet, uma Kasbah ricamente decorada em estilo Andalus, com acabamentos em mármore, estuques e painéis de azulejos, recheada de móveis de qualidade e tapetes do melhor gosto.
O poder do Glaoui traduz-se na enorme riqueza que acumula. Calcula-se que só em terras expropriadas aos seus legítimos proprietários o seu património tenha ultrapassado os 5.000 hectares, a juntar aos 3.500 hectares oferecidos pelo estado colonial.
Na sua vida social relaciona-se com a elite da administração colonial francesa e de figuras de estado de outras potências, como Winston Churchill, com quem joga golfe e bebe chá nos jardins do hotel Mamounia.
O colaboracionismo do Glaoui chega ao ponto de enviar em 1926 para o Rif 1.000 Harkas para combater as forças do nacionalista Abdelkrim El Khattabi.
O Vale do Dadés
O ano de 1953 marca o início da queda do Glaoui, ao conspirar com os franceses para exilar o Sultão Mohamed V. As relações do Sultão com a administração francesa tinham entrado em rota de colisão desde que proferiu o famoso discurso de Tânger em 1947, no qual reclama a independência de Marrocos. Mohamed V é exilado para a Córsega e depois para Madagáscar.
Em 1955 regressa do exílio e é recebido triunfalmente pela população. O Glaoui apresenta-lhe o seu pedido de perdão publicamente, o qual é aceite.
No ano seguinte Marrocos torna-se independente e Mohamed V o seu primeiro Rei.
Haj Thami El Mezouari El Glaoui morre nesse mesmo ano em Telouet vítima de cancro.
Após a sua morte a Kasbah de Telouet é pilhada.

Após a independência as Kasbahs da família do Glaoui foram nacionalizadas pelo estado marroquino, constituindo hoje um Património de inegável valor cultural e paisagístico, e contribuindo decisivamente para a promoção turística do Sul do país.
O seu valor suscita o interesse das autoridades e de inúmeras organizações internacionais para a sua recuperação, salvaguarda e valorização, caso de Ait Benhaddou classificada pela UNESCO como Património Mundial ou Taourirt recuperada integralmente.
Quanto a Telouet, continua votada ao abandono, parcialmente arruinada, como que penitenciando-se pela traição do Glaoui, personagem que fica na memória de Marrocos como o símbolo do colaboracionismo com a ocupação estrangeira. Paradoxalmente, a população residente no local continua fortemente arreigada à imagem do Glaoui e dos tempos de prosperidade de Telouet, considerando-o como um pai e um protector.
Bibliografia:
AMAHAN, Ali . “Mutations sociales dans le Haut Atlas : les Ghoujdama” . MSH, Rabat, 1998
EL MANOUAR, Mohamed . “L’organisation coloniale dans le Sud marocain : Glaoui, «bouclier» des forces colonials” . Le matin.ma, 2005
SAMAMA, Yvonne . “Fragilisation du pouvoir royal et émergence d’un pouvoir parallèle fort _ Le cas de Thami El Glaoui au Maroc (fin XIXe -milieu XXe siècles)”
“L’Histoire de Tinghir” . Tinghir on line, 2010
“Un Peuplement Ancien” . Imassine, 2008

Frederico Mendes Paula

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